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sábado, 7 de setembro de 2019

"O Observador no Escritório", Carlos Drummond de Andrade

“O Observador no escritório: páginas de diário”, Rio de Janeiro, Record, 1985, 200 páginas.

Este é um livro em que Drummond publica anotações que registrava, com frequência irregular, em seu diário. Foram assuntos pessoais, políticos e profissionais, de 1943 a 1977. A maioria são registros que representam sua visão sobre passagens de sua vida, sua rotina e, mesmo, acontecimentos da política. Mas, gostei de alguns que eu considero interessantes, e faço questão de reproduzir no meu blog, mantendo a ortografia da época. Drummond nasceu na cidade mineira de Itabira, em 31 de outubro de 1902, e faleceu, aos 84 anos, no Rio de Janeiro, em 17 de agosto de 1987, apenas 12 dias após a morte de sua filha, Maria Julieta. fr

. [Morte de Mário de Andrade] 26/02/1945: “Às 7:15 da manhã, pelo telefone, Rodrigo (M. F. de Andrade) dá-me a notícia: Mário de Andrade morreu ontem à noite em São Paulo, de angina pectoris. O enterro será hoje às 17 horas. Esta morte é estúpida, mais do que qualquer outra. Mário emergia de longa doença ou de um rosário de doenças: o obscuro câncer nunca operado (segundo diagnóstico sem confirmação), sinusite, amidalite, não-sei-o-quê no pé. Parecia mais forte, e durante o Congresso de Escritores era visto com amigos, bebendo sem restrições nos bares. Sua última carta para mim, datada de 11 deste mês, estava cheia de projetos de livros, além do projeto fundamental de viver o ano de 1945. Acabou-se.
            O dia todo passado em telefonemas para Queirós Lima (oficial de gabinete da Presidência da República), a pedido de Murilo Miranda, para ver se ele conseguia um avião da FAB em que Aníbal Machado, Guilherme Figueiredo, Moacir Werneck de Castro, Bruno Giorgi e o próprio Murilo pudessem chegar a São Paulo a tempo de comparecer ao enterro. O Ministério da Aeronáutica teria prometido o avião do Ministro, mas este estava em Petrópolis, e era necessária a sua autorização, que não veio ou veio tarde, pois só às 16 horas, e depois de mandar dizer que não arranjara nada. Queirós ofereceu o avião. A autorização teria sido dada às 13:30, mas só mais tarde chegara ao conhecimento de Queirós, já sem tempo de fazer a viagem e chegarem os amigos à casa da Rua Lopes Chaves. Todos mostram-se comovidos: Augusto Meyer, Osvaldo Alves, Abgar Renault, o maestro Mignone, Marques Rebelo, Paulo Armando. Este aperta-me ao peito, olha para a foto de Mário num vespertino e mostra-se ao mesmo tempo incrédulo e inconformado. Está sentido porque não recebeu nenhum aviso mais cedo. Luís Camilo me surpreende um pouco a dizer: ‘Morreu na véspera da libertação’, referindo-se ao desfecho político que se espera no país, e deixando de lado o fato em si, de perdermos alguém que representa alguma coisa além das circunstâncias.
           Vinícius de Morais trouxe ao dia uma nota estranha. Sonhara, da noite de ontem para hoje, que ia viajar de avião para São Paulo, mas que por um motivo qualquer não pôde seguir. Um grupo de amigos seus, entretanto, havia embarcado, e ele recebe a notícia: o avião caíra, todos mortos. É quando Tati, sua mulher, o acorda, contando-lhe a morte de Mário. Ele foi então à casa de Anibal, que o informa do projeto da ida de um grupo de amigos a São Paulo, para o enterro. O poeta quer dissuadi-los da viagem, em face do presságio. Rodrigo, a quem ele fala neste sentido, acha que, pelo sim pelo não, é bom avisar aos pretendentes à viagem. Se acontecer alguma coisa com o avião, sentiremos remorso por não ter contado. Murilo Miranda, porém, está disposto a seguir de qualquer jeito. Como não há mais tempo, Vinícius sente-se aliviado. Ninguém viaja.” pp. 22-23.
 
 
. 1º/4/1945: “(...) Saio com o casal [Samuel] Wainer para um chope no bar do Luxor Hotel. Samuel vai lançar Diretrizes como jornal, com o slogan ‘Um jornal que diz o que os outros não dizem’, e me quer para redator, com um artigo diário e, de vez em quando, fazendo entrevistas. Dois jornais, duas orientações distintas: o Correio [da Manhã] entre conservador e liberal, contra Getúlio; Diretrizes, com vocação para a esquerda. Como irei me equilibrar entre duas posições, mantendo-me igual a mim mesmo? Começo a avaliar as dificuldades do jornalismo de opinião subordinado a orientações alheias.” p. 30

. 10/4/1947: “À noite, visita-me o romancista de 25 anos, que já foi aviador e pára-quedista,e hoje é instrutor de pára-quedismo, estuda psiquiatria, pratica ilusionismo, grafologia, frenologia e palmestria. Já escreveu 15 livros, diz-se meu admirador e pergunta-me se já publiquei algum.” p. 67.

. 15/8/1947: “Sonho. Estou no sobrado de minha família, em Itabira. Madrugada, céu escuro. Silêncio total. Vejo sair da casinha em frente, perto da Câmara, uma negra vestida de azul, que com certeza acaba de passar a noite com um homem. Só então reparo que estou na sacada, de onde posso avaliar a largura da rua que, quando garoto, me parecia maior, em comparação com a que lhe achei na mocidade. Teria a rua ficado mais estreita, à proporção que eu me fazia homem? Não. Agora voltara a ser larga, em face da minha idade madura. A correlação entre a rua e minha idade apareceu-me então sob forma poética, e fiz imediatamente um poema de três versos: sobre a rua da infância, larga; a da mocidade, estreita; e a da madureza, larga outra vez. Poema que me agradou muito, pois revelava secreta ligação entre o ser e as coisas. Mas, poema em sonho, lá se foi com ele. Acordei sem lembrança dos versos.” p. 71.

. 3/01/1958: “Surge a primeira poetisa do ano. Usa de ardil para ser recebida: pelo telefone, pede orientação para um trabalho que tem de apresentar numa reunião de colégio. ‘Mas os colégios não estão em férias?’ pergunto. ‘No meu, o grêmio literário funciona independente do período de aulas.’ Vai à tarde na repartição e encontra-me conversando com Gastão Cruls, que lhe apresento. ‘Os seus livros são muito difíceis de ler’, diz a Gastão. Como este, surpreendido, lhe pergunta se já leu os seus contos ou algum romance, ela pede desculpas pelo engano, julgara-o sociólogo.’ Qual?’, o romancista quer saber. Ela se esquiva, pede novamente desculpas e muda de assunto.
            Tem 19 anos, é noiva, mas sofre de uma angústia especial, a angústia da poesia. Quer que eu lhe diga se deve continuar a fazer versos – a ‘sofrer esse sofrimento diferente dos outros’. Se há esperanças de realização pela poesia, no seu caso. Respondo-lhe que não sei nada, não posso aconselhar-lhe nada. Entrega-me poemas (‘olhe que não tenho cópia, hein?’) e virá busca-los na semana que vem. Claro que o grêmio do colégio não existe, nem mesmo o colégio – confessa.
            O diabo é que não se salva sequer um verso, na papelada dos ‘poemas’. O outro nome de poesia é ilusão.” p. 115.

. 7/9/1959: “Ontem, encontro casual com Austregésilo de Athayde, na Rua 1º de Março. Abraça-me, festivo, e entra logo no assunto: a trasladação dos despojos de Machado de Assis e Carolina para o mausoléu da Academia Brasileira. Assegura-me que não há qualquer declaração de acadêmico no sentido de promove-la. Respondo-lhe citando a entrevista de Elmano Cardim ao Jornal do Comércio. A idéia seria colocar um monumento a Machado em lugar de honra do mausoléu coletivo, e marcar a transferência dos despojos para 21 de junho de 1989, data do sesquicentenário do nascimento do escritor – diz-me Athayde. Daqui a 30 anos... Quem estiver vivo comparecerá. Certo? – pergunta ele, contando sem dúvida com a esperança fundada de eu não estar vivo até lá para impugnar, embora sem êxito, a absurda transferência. (Machado manifestou, em testamento, o desejo de ser sepultado no túmulo de Carolina, o que exclui, naturalmente, qualquer veleidade de transferência de local.)
            Despedimo-nos com risadas de paz, mas eu continuo disposto a topar esta briga pelo respeito à vontade final do nosso escritor máximo, ameaçada de anulação pela fútil vaidade acadêmica. Nem Machado é propriedade da instituição que fundou.” pp. 118-119.

. 8/11/1962: “Diálogo de atraso:
- Desculpe, se me fiz atrasar.
- Por quê? O pior é não ter a quem ou o que esperar.” p. 140.

. 25/4/1963: “Reflexão de Dolores [esposa Carlos Drummond de Andrade]:
- É uma grande coisa a gente, no fim da vida, ter dinheiro para comprar o de que precisa no dia-a-dia, como está acontecendo conosco.
            Encomendas avulsas de textos, e o dinheirinho certo da aposentadoria de funcionário e das crônicas no Correio da Manhã, se não autorizam fantasias, garantem, pelo menos, o cotidiano e certa paz.” p. 144.

. 23/6/1965: “Com boa disposição para o almoço na José Olympio, e excelente memória, [Manuel] Bandeira lembra que o filólogo Mário Barreto queria casar-se com sua irmã Maria Cândida, o ‘anjo moreno, violento e bom’ de que fala em um de seus poemas. Quando o pai comunicou à moça essa pretensão, ela e a mãe desandaram a rir, pois nada fazia crer que Mário alimentasse tal propósito. O Dr. Bandeira interpretou o riso de Maria Cândida como negativa e informou ao pretendente que seu pedido fora recusado. Ao contar em casa que transmitira a negativa, a irmã de Manuel protestou: ‘Mas eu não disse que não queria casar com ele. Ri, apenas. E iria pensar no assunto.’ Mas já era tarde. Mário Barreto casou-se com outra moça, linda, não foi feliz, e morreu atropelado por bicicleta.” p. 155.

. 16.11.1965: “Visita do jovem professor Daus e sua mulher. Casal alemão. O marido veio estudar poesia popular do Nordeste, do ponto de vista sociológico. Viajou pelo Brasil até o Amazonas, e dá testemunho da miséria em que vive o trabalhador do Nordeste e do Norte. Em Pernambuco, a paga diária é de cento e tantos cruzeiros; em certo município, 80% das terras pertencem a um só proprietário, e este não deixa cultivá-las. Simpático, falando um português razoável, conta que na Alemanha a geração que fez a guerra de 1939-1945 começa a vangloriar-se de tê-la feito. Os veteranos reúnem-se para celebrar a amizade que surgiu da luta comum, os rasgos heroicos da pátria... Não admitem a culpa nacional nem se arrependem do extermínio de alguns milhões de judeus.
            Na Alemanha Oriental, o diretor de uma fábrica de automóveis, parente do visitante, ao comparecer a um jantar numeroso, escondeu discretamente nos bolsos do paletó algumas bananas, para oferecê-las a seus filhos, em casa. Há homens que fogem do lado Oriental para o Ocidental e voltam àquele, repetindo várias vezes a operação, a fim de obter vantagens. E há mesmo empresas criadas para facilitar a movimentação clandestina de um a outro lado, que às vezes provoca a morte do viajante. Os maiores de 60 anos, aposentados, deslocam-se facilmente de zona, porque aos Governos das duas partes não interessa o pagamento de suas pensões.” pp. 155-156.

. 14.12.1968: [Sobre o AI-5, Ato Institucional nº 5, publicado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva] “Minhas mais antigas lembranças políticas, remontando à infância, giram em torno do quatriênio presidencial do Marechal Hermes [da Fonseca], em que o estado de sítio suspendeu as liberdades do cidadão, governadores de Estado foram depostos, jornalistas da Oposição presos, o navio Satélite despejando corpos no mar, a Bahia bombardeada. Quase 60 anos depois, o Governo de outro marechal [Costa e Silva] (e na minha velhice) golpeia a Constituição que ele mesmo mandou fazer e suprime, por um ‘ato institucional’, todos os direitos e garantias individuais e sociais. Recomeçam as prisões, a suspensão de jornais, a censura à imprensa. Assisto com tristeza à repetição do fenômeno político crônico da vida pública brasileira, depois de tantos anos em que a violência oficial, o desprezo às normas éticas e jurídicas se manifestaram de maneira contundente, em crises repetidas e nunca assimiladas como lição. Renuncio à esperança de ver o meu país funcionando sob um regime de legalidade e tolerância. Feliz Natal...” p. 164.


. 25.7.1971: “Aturdido, leio no jornal o artigo em que se analisa um de meus poemas à luz das novas teorias lítero-estruturalistas. Travo conhecimento com expressões deste gênero: ‘dinamismo dos eixos paradigmáticos’, ‘núcleo sêmico’, ‘invariante semântica horizontal’, ‘forma de referência parcializante e indireta’, ‘matriz barthesiana’... O poeminha, que me parecia simples, tornou-se sombriamente complicado, e me achei um monstro de trevas e confusão.” p. 174.

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