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quinta-feira, 4 de junho de 2020

"A aventura de Miguel Littín: clandestino no Chile": Gabriel García Márquez

“A aventura de Miguel Littín: clandestino no Chile”, Gabriel García Márquez, Rio de Janeiro, Editora Record, 1986, 128 páginas, tradução de Eric Nepomuceno.
 
            Eu acabei de reler “A aventura de Miguel Littín: clandestino no Chile”, do jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1982. O livro conta a aventura de Miguel Littín, considerado por muitos o mais importante cineasta chileno, em maio e junho de 1985, quando ele retornou clandestinamente a seu país durante a ditadura militar de Augusto Pinochet. À época, Littín estava exilado há 12 anos, inicialmente no México, e, depois, na Espanha, onde morava com a esposa e três filhos.
            O nome do cineasta fazia parte de uma lista de cinco mil exilados proibidos de entrar no Chile. E para consegui-lo ele teve que mudar totalmente a sua aparência, emagrecer dez quilos, tirar a barba, pintar o cabelo, alterar o penteado e a maneira de rir, passar a usar óculos de grau, e mudar o estilo de se vestir. Com a ajuda de organizações democráticas atuantes na clandestinidade, conseguiu documentos falsos, adotando uma nova personalidade.
            Littín passou a ser um rico uruguaio, dono de uma empresa de publicidade com sede em Paris, que iria filmar um comercial de um novo perfume no Chile. Entrou no país acompanhado pela sua “esposa”, uma jovem da resistência chilena. Apesar da importância dela no sucesso do plano, ele conta que os dois tiveram muitos atritos, por conta de suas personalidades distintas. Mas, foi ela quem o ajudou nos contatos necessários para fazer o filme, e quem tinha a atribuição de denunciar ao mundo caso Littín fosse preso.
            “”Na medida em que nos aproximávamos do centro da cidade, desisti de olhar e admirar o brilho material com que a ditadura tratava de apagar o rastro sangrento de mais de quarenta mil mortos, dois mil desaparecidos e um milhão de exilados. Em compensação, me fixava nas pessoas, que andavam com uma pressa inusitada, talvez pela proximidade do toque de recolher. Mas não foi apenas isso o que me comoveu. As almas estavam em seus rostos sacudidos pelo vento gelado. Ninguém falava, ninguém olhava em nenhuma direção definida, ninguém gesticulava nem sorria, ninguém fazia o menor gesto que delatasse seu estado de espírito dentro dos casacos escuros, como se todos estivessem sozinhos numa cidade desconhecida. Eram rostos brancos que não revelavam nada, nem mesmo medo.”
            O cineasta coordenou o trabalho de três equipes europeias de cinema. Eram da Itália, França e Países Baixos (Holanda), todas devidamente autorizadas pelo governo chileno a trabalhar no país. A primeira supostamente iria fazer um documentário sobre a imigração italiana no Chile; a francesa, um documentário ecológico; e a holandesa uma cobertura sobre os recentes terremotos ocorridos no país à época.
           As equipes não tinham conhecimento do objetivo político do que seria filmado, nem da existência uma das outras. Mas os seus respectivos responsáveis sabiam quem era o verdadeiro coordenador do projeto e os seus propósitos. No final dos trabalhos, mais uma equipe de jovens cineastas da resistência chilena passaram a colaborar com as filmagens.
           As seis semanas em que essas equipes e Littín percorreram o país, para mostrar como estava o Chile após 12 anos do golpe militar de 1973, resultaram no filme “Acta General de Chile”, que pode ser assistido no YouTube. Gabriel García Márquez entusiasmou-se com a história, contada a ele pelo próprio cineasta, em Madrid. Os dois passaram uma semana conversando, e as 18 horas desta conversa foram transformadas neste livro, escrito na primeira pessoa, como se estivesse sendo narrada pelo próprio Miguel Littín.
            Durante o período em que o cineasta esteve no Chile, o país estava em estado de sítio, com toque de recolher a partir da meia-noite. Foram a resposta da ditadura aos protestos de rua e a uma greve nacional de um dia, organizados meses antes pela oposição. Littín, através de Gabriel García Márquez, relata os momentos de tensão vividos, quando temia ser reconhecido e preso pelos temíveis “carabineros”, a polícia chilena, o que o obrigou a trocar de hotéis algumas vezes.
           Littín descreve as suas impressões sobre o país, 12 anos após ter que fugir da repressão da ditadura, desfazendo a imagem oficial passada pelo “milagre chileno”. As pessoas eram menos comunicativas do que antes; e havia muito mais camelôs nas ruas, incluindo profissionais de elevado nível educacional, como médicos e engenheiros. A concentração de renda aumentou, assim como a dívida externa, que passou de quatro bilhões de dólares para quase vinte.
            “O Chile não foi apenas um país modesto até o governo de Allende [Salvador Allende, presidente eleito, deposto pelo golpe de 1973, quando acabou morto dentro do palácio do governo, invadido por militares], mas sua própria burguesia conservadora se orgulhava da austeridade como uma virtude nacional. O que a Junta Militar fez para dar uma aparência impressionante de prosperidade imediata foi desnacionalizar tudo o que Allende tinha nacionalizado, e vender o país ao capital privado e às corporações multinacionais. O resultado foi uma explosão de artigos de luxo, deslumbrantes e inúteis, e de obras públicas ornamentais que fomentavam a ilusão de uma bonança espetacular.”
           Em sua aventura em um Chile dominado pela ditadura, Littín conseguiu até mesmo entrar, com autorização dos militares, no Palácio La Moneda, sede do governo chileno, e viu passar por ele o próprio ditador Augusto Pinochet. Apesar de orientado a não fazer contato com familiares, em uma noite Miguel Littín acabou desviando o caminho que fazia para fugir dos “carabineiros” durante o toque de recolher, e visitou a mãe. Nem mesmo ela o reconheceu inicialmente.  O autor define a importância do seu livro:
            “Pelo método da investigação e pelo caráter do material, esta é uma reportagem. Mas é mais: é a reconstrução emocional de uma aventura cuja finalidade última era sem dúvida muito mais profunda e comovedora que o propósito original e bem sucedido de fazer um filme driblando os riscos do poder militar. O próprio Littín disse: ‘Este não é o ato mais heroico da minha vida, é o mais digno’. Assim é, e creio que esta é a sua grandeza.” fr

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