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sábado, 13 de junho de 2020

O livro perdido

O LIVRO PERDIDO
Fernando Sabino
             - Quando eu estava na faculdade, havia lá um velho professor chamado Spinelli, ele ensinava direito penal. Tinha ideias anarquistas, vivia nos falando no caso Sacco e Vanzetti.
Um dia ele me chamou depois da aula e disse: Heitor, sabe que seu pai foi meu aluno? Bom aluno por sinal. Emprestei-lhe  um livro, aliás gostaria que ele me devolvesse. E me disse o título do livro, do gênero ‘O anarquismo em face da filosofia existencial’, ou ‘A existência em face da filosofia anarquista’, não estou bem certo. Era desses livros de época, já esquecidos, que ninguém tem interesse em reeditar.
Quando cheguei em casa, falei com o velho no livro, e ele me olhou por cima dos óculos com cara de espanto. Também, pudera! tinha mais de vinte anos de formado, mal se lembrava do professor Spinelli.
Na aula seguinte, daí uns vinte dias, o professor me cobrou: como é, Heitor, falou com seu pai? Tinha falado sim, ele ia procurar o livro, afinal já havia muitos anos, não é professor? Assim que encontrasse ele faria questão de devolver.
O tempo foi passando e o professor sempre me perguntando pelo diabo do livro. Eu desconversava como podia: a biblioteca do meu pai era muito grande, ele ainda estava procurando. Chegava em casa e perguntava ao velho: encontrou o livro do professor Spinelli? Meu pai, com ar vago: o livro de quem, meu filho? E me olhava a quilômetros de distância, como se eu estivesse falando grego: sei lá que livro é esse, menino. Na faculdade, o professor me torrando a paciência: desculpe insistir, mas aquele livro que emprestei a seu pai...
Eu já andava meio baratinado, sem saber o que fazer. Saí procurando o livro em tudo quanto é livraria e sebo da cidade, para ver se acabava logo com aquilo, pois já andava matando aulas seguidas por causa do professor Spinelli, ia acabar reprovado. E não encontrei, ninguém jamais tinha ouvido falar no raio do livro.
Um dia resolvi enfrentar a situação e abri o jogo. Esbarrei com o Spinelli no corredor da faculdade e antes que ele abrisse a boca, despejei: já falei com meu pai uma porção de vezes sobre o livro, o senhor não me leve a mal, professor, mas por que não fala com ele o senhor mesmo?
Com essa ele não contava. Gaguejou um pouco e acabou dizendo que seria pouco delicado: não vejo seu pai há tanto tempo, é possível que ele nem se lembre direito de mim. O que era a mais pura expressão da verdade: eu na hora tive vontade de perguntar como queria que se lembrasse do tal livro.
Em todo caso, mal chegava em casa eu insistia: papai, o livro do professor... Um dia ele acabou perdendo a esportiva: se você me falar mais uma vez nesse maldito livro, meu filho, eu te dou um ensino que você nunca mais esquece. Eu ainda tentei uma saída honrosa: e o que é que eu falo com o professor? Ele me despachou dizendo que era para eu falar com o professor que pegasse o tal livro e...
Bem, até para isso, primeiro era preciso encontrar o livro. Comecei a fuçar de cabo a rabo a biblioteca do meu pai, nas horas em que ele não estava em casa. Percorri prateleira por prateleira, volume por volume, com uma determinação homicida: ou eu encontro, ou eu mato o professor Spinelli.
Até que um dia... Foi num sábado, me lembro que meus pais tinham ido jantar fora, eu estava sozinho em casa, podia mexer no escritório à vontade. Ao meter a mão atrás de uma fila de grossos volumes cobertos de poeira, tirei do fundo da prateleira um livrinho cinzento e mofado, era ele! Pouco mais que um folheto meio esfrangalhado. No dia seguinte comuniquei a meu pai a novidade: papai, encontrei! E ele, levantando pachorrentamente os olhos de outro livro: encontrou o quê, meu filho?
Fui assistir à aula do professor Spinelli, que há tempos não me via nem pintado. Ele me olhou com surpresa, que houve com você, Heitor? Esteve doente? Meu primeiro impulso foi o de brandir o livro na cara dele, falar olhe o que eu trouxe aqui! E mandar que ele enfiasse o livro onde meu pai tinha sugerido. Mas com um prazer sádico resolvi fazer render aquilo até onde pudesse e então esperei que ele tocasse no assunto.
O que não demorou muito: você por acaso tem alguma notícia daquele livro que emprestei a seu pai... Tenho sim, professor, respondi: o livro foi encontrado. Os olhinhos dele brilharam: ah, é? Foi encontrado? E posso saber quando me vai ser devolvido? Eu peguei o livro e lhe estendi: aqui está, professor.
Bem, agora escuta só: o homem segura o livro com todo cuidado como se ele pudesse se desmanchar nas suas mãos, folheia com dedos delicados, lê um e outro pedaço, sorri satisfeito, torna a fechá-lo e me estende de volta, dizendo: toma, eu estava querendo emprestar a você, para que você lesse.
 Eu o olhava, estupefato, enquanto ele insistia: faço questão que você conheça, é um livro importante, verdadeira obra-prima. Saí dali meio aparvalhado, levando o livro de volta. Contei a meu pai quando cheguei em casa, mas não cheguei a ler o livro. Os anos passaram, eu me formei e nunca mais vi o professor Spinelli.
Pois outro dia, não é que entro num ônibus e vou me sentar justamente ao lado dele. Os mesmos olhinhos miúdos por trás dos óculos sem aro, o mesmo nariz fino, a mesma careca brilhando – apenas um pouco mais murcho. Me reconheceu logo, e era fatal – algo me dizia que ia falar no tal livro, nosso único assunto em comum.
E não deu outra coisa. Depois de dizer que eu não era dos mais aplicados, estudava pouco, perguntou se eu me lembrava de um livro que ele me havia emprestado... Me lembro, professor, como não? Só me lembro disso – me deu vontade de dizer: é a recordação mais forte que eu tenho do meu tempo de faculdade, responsável por algumas das minhas neuroses, se eu hoje sou assim deve ser em parte por causa daquele livro. E ele então, muito sério: eu ficaria grato de você me devolvesse, gostaria de emprestar a um ex-aluno meu...
E agora, que é que eu faço? Ele pediu meu endereço e disse que faz questão de vir ele próprio buscar. Estou perdido. Tenho de achar esse livro, para que ele seja emprestado ao tal aluno, passe às mãos de outro, e assim por diante, enquanto o professo Spinelli existir. E o professor Spinelli, evidentemente, existirá até o final dos tempos.

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