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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Uma vela para Dario

UMA VELA PARA DARIO
Dalton Trevisan

         Dario vinha apressado, o guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Foi escorregando por ela, de costas, sentou-se na calçada, ainda úmida da chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
         Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouviu resposta. Um senhor gordo, branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
         Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se afastasse e o deixasse respirar. E abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
         Cada pessoa que chegava se punha na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram acordadas e vieram de pijama às janelas. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao lado dele.
         Uma velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo transportou-o na direção do táxi estacionado na esquina. Haviam introduzido no carro a metade do corpo, quando o motorista protestou: se ele se finasse na viagem? Concordaram em chamar a ambulância. Dario foi conduzido de volta e recostado à parede – não tinha os sapatos e o alfinete de perola na gravata.
         Alguém informou que na outra rua existia uma farmácia. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia era no fim do quarteirão e, além do mais, ele estava muito pesado. Foi largado ali na porta de uma peixaria. Imediatamente um enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse o menor gesto para espantá-las.
         As mesas de um café próximo foram ocupadas pelas pessoas que tinham vindo apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
         Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os documentos. Vários objetos foram retirados de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do seu nome, idade, cor de olhos, sinais de nascença, mas o endereço na carteira era de outra cidade.
         Registrou-se tumulto na massa de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupava toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu contra a multidão e várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
         O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identifica-lo – os bolsos vazios. Restava apenas a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio – quando vivo – não podia retirar do dedo senão umedecendo-o com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
         A última boca repetiu – “Ele morreu, ele morreu”, e então a gente começou a se dispersar. Dario havia levado quase duas horas para morrer e ninguém acreditara que estivesse no fim. Agora, os que podiam olhá-lo viam que tinha todo o ar de um defunto.
         Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde as bolhas de espuma haviam desaparecido. Era apenas um homem morto e a multidão se espalhou rapidamente, as mesas do café voltaram a ficar vazias. Demoravam-se nas janelas alguns moradores, que haviam trazido almofadas para descansar os cotovelos.
         Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
         Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

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