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domingo, 27 de fevereiro de 2022

Black (Artur Azevedo)

BLACK
Artur Azevedo

     Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São Cristóvão, frequentava a casa do Senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro.
     Mas, por uma singularidade notável, tão notável que a vizinhança logo notou, Leandrinho só ia à casa do Senhor Martins quando o Senhor Martins não estava em casa.
     Esperava que ele saísse e tomasse o bonde que o transportava à cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no corredor com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e Dona Candinha (assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava o tálamo aviltado pelos seus amores ignóbeis.
     A aventura de Leandrinho tinha um único senão: havia na casa um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho.
     Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignação que tamanha patifaria lhe causava.
     Entretanto, o inconveniente, foi remediado. A poder de carícias e pães-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebe-lo à porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
     As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximação do perigo; por isso, Dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse relações de amizade com o Senhor Martins.
     Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresenta-lo ao marido.
     Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestação da simpatia do Senhor Martins não se demorou tanto como a de Black: foi fulminante.
     Os maridos são por via de regra menos desconfiados que os bull-terriers.
     O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tão simpático, tão bem-educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam dois velhos amigos.
     À saída do clube, Leandrinho deu o braço a Dona Candinha, e, como “também morava para aqueles lados”, acompanhou o casal até a rua do Pau-Ferro.
     Separaram-se à porta de casa.
     O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a sua visita. Jantaram às cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear.
     ─ Hei de aparecer ─ prometeu Leandrinho.
     ─ Olhe, venha quarta-feira ─ disse o Senhor Martins. ─ Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns amigos à mesa, poucos, muitos poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos à muito prazer.
     ─ Não faltarei ─ protestou Leandrinho.
     E despediu-se.
     ─ É muito simpático ─ observou o Senhor Martins metendo a chave no trinco.
     ─ É ─ murmurou secamente Dona Candinha.
     Lack, que os farejava, esperava-os lá dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
     Na quarta-feira aprazada Leandrinho embonecou-se todo e foi à casa do Senhor Martins, levando consigo um soberbo ramo de violetas.
     O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresenta-lo às pessoas presentes, quando Black veio a correr lá de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém-chegado, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
     O Senhor Martins, que conhecia o cão e sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma ideia sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situação ficou para ele perfeitamente esclarecida.
     Não se descreve o escândalo produzido pela inocente indiscrição de Black. Basta dizer que, a despeito da intervenção dos parentes e amigos ali reunidos, Dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés valentemente aplicados.
     O Senhor Martins, que não tinha filhos, a princípio sofreu muito, mas afinal habituou-se à solidão.
     Nem era esta assim tão grande, pois, todas as vezes que ele entrava em casa, vinha recebe-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
"Contos escolhidos", Artur Azevedo, São Paulo, editora Click, 1997, 159 páginas (Coleção Livros O Globo, vol. 15).

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