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sexta-feira, 20 de maio de 2022

"A polêmica" (Artur Azevedo)

A POLÊMICA
Artur Azevedo

     O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.
     Felizmente era solteiro, e o dono da “pensão” onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.
     Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.
     Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontrava na rua.
     O negociante ouviu-o, e disse-lhe:
     ─ Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...
     ─ Estou às tuas ordens.
     ─ Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no “Jornal do Comércio”, um artigo contra o Saraiva.
     ─ Que Saraiva?
     ─ O da rua Direita.
     ─ O João Fernandes Saraiva?
     ─ Esse mesmo.
     ─ E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?
     ─ Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.
     A essa palavra “cobres”, o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:
     ─ Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...
     ─ Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que seja mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero trata-lo com luva de pelica. Sou o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?
     ─ Mas...
     ─ Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.
     ─ Tenho escrúpulos...
     ─ Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção.
     E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil. O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.
     O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura da lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.
     ─ Muito bem! ─ exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.
     ─ Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!
     E, depois de um passeio à burra, meteu um envelope na mão do Romualdo, dizendo-lhe:
     ─ Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. A época é difícil, mas há de se arranjar.
     O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!
     Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da “pensão” que lhe emprestasse o “Jornal do Comércio”, e viu a sua prosa “Eu e o sr. João Fernandes Saraiva”, assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.
     À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra “urgente”.
     Ele abriu-a e leu:
     “Romualdo. ─ Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do ─ João Fernandes Saraiva”.
     Este bilhete inquietou o ex-jornalista.
     Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele?
     O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!
     ─ Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.
     O menino foi-se.
     O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.
     Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:
     ─ Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!
     E levou-o para um compartimento reservado.
     ­─ Leste o “Jornal do Comércio” de hoje?
     ─ Não ─ mentiu prontamente o Romualdo. ─ Raramente leio o “Jornal do Comércio”.
     ─ Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!
     O Romualdo fingiu que leu.
     ─ Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! ─ bradou o Saraiva. ─ Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!
     ─ O artigo não está mau... Tem até estilo...
     ─ Preciso responder!
     ─ Eu, no teu caso, não respondia...
     ─ Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio “Jornal do Comércio” e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.
     ─ Eu?...
     ─ Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...
     ─ Bem sabes ─ gaguejou Romualdo ─ que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...
     ─ Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!
     No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.
     Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:
     ─ Por amor de Deus não te recusas a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar algumas coisa...
     O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.
     Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: ─ Bravo! Não poderia sair melhor! ─ e, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil réis e entregou-o ao prosador.
     ─ Oh! Isto é muito, Saraiva!
     ─ Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pagues bem!
     ─ Obrigado: mas olha... recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no “Jornal” pode haver alguém que conheça a minha letra.
     ─ Copiá-lo-ei eu mesmo.
     ─ Adeus.
     ─ Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!
     ─ Está dito.
     No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o “Jornal do Comércio” na mão.
     ─ O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!
     E batendo com as costas da mão no jornal:
     ─ Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas, ainda assim, quem escreveu por ele está longe de ter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...
     E o Romualdo escreveu...
     Durante um mês, teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um, ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.
     Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: ─ Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!
     Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.
     E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.
     O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

"Contos escolhidos", Artur Azevedo, São Paulo, editora Click, 1997, 159 páginas (Coleção Livros O Globo, vol. 15).

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