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terça-feira, 19 de setembro de 2023

Eu maratonei os 316 episódios de "Teatro de Mistério" da Rádio Nacional

        Quando criança, lembro de ter ouvido na Rádio Nacional o “Teatro de Mistério”, e guardo na memória afetiva alguns desses momentos. Era um programa realizado ao vivo no auditório da emissora, localizado à época no edifício histórico ‘A Noite’, na Praça Mauá nº 7, no Centro do Rio de Janeiro. A Rádio Nacional ainda tinha uma boa audiência pelo país, com as suas radionovelas, seriados e humorísticos, e o programa fez grande sucesso durante décadas, tendo começado a ser produzido em 1957. As histórias sempre foram criadas por Hélio do Soveral (1918-2001), mas os personagens, atores, diretores e outros profissionais mudaram com o tempo, claro. Infelizmente, esses episódios mais antigos não estão disponíveis, muitos deles, talvez todos, devem ter sido perdidos.
        Eu encontrei no Youtube alguns canais que disponibilizam os 316 episódios dos anos 1970 e 1980, entre eles o do meu xará Flávio Antônio. Eu já ouvi todos eles e até tornei a ouvir novamente mais uma vez. Indico a todos que desejam matar as saudades ou conhecer! É sobre esses episódios que eu vou comentar na postagem de hoje. Eles passavam aos sábados, às 21:05, com reapresentação às segundas-feiras, às 22:05, mas em outros períodos também devem ter passado em dias diferentes. Em determinado momento, por exemplo, passaram a iniciar às 20:05 dos sábados.     
        Ao iniciar cada episódio, tocava uma música de introdução, que já colocava os ouvintes no clima de suspense do programa. E o excelente Domício Costa (1928-2016), o inspetor Santos, com uma voz muito bonita, dizia: “Quanto mais negamos um crime, mais a consciência nos obriga a pensar nele!”. Carioca, Domício Costa atuou também como ator na televisão e no cinema; e como dublador, tendo sido a voz de Muttley e Dick Vigarista do desenho clássico “Corrida Maluca”. A direção de rádio-teatro foi durante muito tempo de Dayse Lucidy.
        Os rádioatores seguiam um roteiro, interpretando o texto de Hélio do Soveral ao vivo, sempre uma história de suspense policial, e cada episódio tinha em torno de 45 minutos de duração. A sonoplastia estimulava a imaginação dos ouvintes, inserindo na hora os sons de carros, portas, animais e tudo mais que fosse necessário; é bom lembrar que naquela época não havia os recursos tecnológicos de hoje em dia. Hélio do Soveral nasceu em Portugal, mas veio para o Brasil ainda criança. Aqui ele trabalhou também como tradutor e em outras emissoras de rádio e na televisão, além de escrever livros para o público infanto-juvenil, inclusive utilizando diferentes pseudônimos.
        A quase totalidade dos episódios de “Teatro de Mistério” nesse período de 1970-80 teve o inspetor Marinho Santos à frente das investigações no Departamento de Polícia Judiciária. O ouvinte vai acompanhando o desenvolvimento da trama, tentando descobrir quem era o criminoso, mas os suspeitos mudavam constantemente, de acordo com as deduções do inspetor e de novas provas apresentadas.
        Alguns episódios tiveram outros inspetores diferentes na resolução dos casos: Silveira, Nogueira, Ribeiro e Leão. Todos eles interpretados por Carlos Leão, rádioator que, além desses, fez muitos outros papeis, e foi também responsável pela direção de rádio-teatro durante algum tempo. Outros episódios não tiveram nenhum inspetor, as investigações foram feitas pelos próprios personagens ou comandadas por algum delegado ou pelos auxiliares do inspetor Santos, que o consultavam por telefone, já que ele estaria de férias ou gripado. Na realidade, a ausência de Domício Costa devia ser porque ele próprio provavelmente estava de férias ou impedido de trabalhar por algum motivo.
        Esses auxiliares do inspetor Santos eram três. Minoro era interpretado por Cahuê Filho (1911-1984), que também foi o primeiro dublador do coelho Pernalonga no desenho animado Era um japonês atrapalhado, que falava com forte sotaque o português. Minoro era amigo do inspetor e ia sempre encontrá-lo para participar de alguma investigação, já que dizia estar aposentado e não ter o que fazer. Ele trabalhava por prazer, não recebendo salário para isso, e constantemente estava presente em alguma cena de crime, fosse no seu prédio, em um avião, na sauna, na estrada etc. 😄😄😄 Os funcionários mesmos eram Suzana de Toledo Alcântara, a Suzy, interpretada por Lurdes Santana, e Jorge Lopes, o “Jorjão”, com a interpretação de José Valuzi, dois “auxiliares” muito inconvenientes e que, constantemente, abusavam de suas autoridades.
        Esses três personagens davam, ou procuravam dar, um toque de humor às histórias, mas a verdade é que se elas não tivessem a participação deles eu tenho certeza de que seriam muito melhores! Suzy implicava o tempo todo com Minoro, ofendendo-o com todo tipo de nomes, inclusive chamando-o de “amarelão”, em referência à sua nacionalidade (na época, achavam tudo isso “engraçado”). Ela era muito debochada. Minoro deixou de participar dos episódios, provavelmente com a morte de Cahuê Filho, e entrou o Jorjão, que passou a trabalhar com Suzy.
        Nos episódios em que os dois estão juntos, eles trocam ofensas o tempo todo, não se entendem, e o inspetor Santos tem que repreendê-los, como se eles fossem crianças e não funcionários de um departamento importante da polícia. Eu sei que é ficção, mas, mesmo assim, é demais! Nos anos 1970/80 valia tudo! 😄😄😄 Em alguns episódios, o Jorjão estaria de licença e apareceu um novo assistente para o inspetor Santos, de nome Zé Maria, mas ficou pouquíssimo tempo. Ele foi interpretado por Navarro de Andrade e também por Geraldo Cruz.
        O pior dos três era o tal de Jorjão, um sujeito mal educado, ignorante, que mal sabia falar direito, e defensor de práticas de tortura, sempre ameaçando agredir alguém para conseguir as informações que precisava, fossem homens ou mulheres. Ele orgulhava-se de dizer que, com ele, todo mundo confessava “até o que não sabia”. O pior é que o inspetor Santos o repreendia, mas sempre o mantinha trabalhando. Um sujeito como esse deveria ter sido demitido e até preso, aliás, nunca poderia ter sido contratado.
        Mas é preciso lembrar que os programas passavam nas décadas de 1970 e 80, justamente durante a ditadura militar. E naquela época, antes da Constituição de 1988, muita gente trabalhava no serviço público sem concurso público. Somente assim um sujeito como esse Jorjão, que dizia o tempo todo “a gente vamos”, podia trabalhar no serviço público. O próprio inspetor Santos costumava ironizar quando ouvia as suas besteiras.
        Eu anotei algumas passagens bem curiosas, muitas delas são características marcantes daquela época, é preciso lembrar sempre disso. Os programas eram ao vivo, e, como não podia deixar de acontecer, algumas vezes os rádioatores erravam o texto, equivocando-se ao falar alguma palavra, mas eles corrigiam-se rápido e seguiam em frente, ou algum colega ajudava. O arsênico era o veneno preferido pelos assassinos nos textos de Hélio do Soveral. No episódio “As cobaias”, uma mulher pede ajuda ao inspetor Santos para investigar o envenenamento de seus cachorros, mas ele recusa-se: “Nada posso fazer! Não está na alçada do Departamento Judiciário, nós só trabalhamos com homicídios.” Bom, as vítimas não eram humanas, mas, ainda assim, tinham ocorrido homicídios. O inspetor acabou aceitando investigar os crimes, e descobriu que eles eram uma espécie de preparativo para matar uma pessoa.
        É interessante reparar que a forma como a sociedade lida com determinados assuntos mudou bastante nas últimas décadas. O tal do Jorjão tem atitudes preconceituosas de todo tipo: fala das mulheres como objetos e as importuna de maneira muito desrespeitosa, inclusive querendo fazer revistas nelas. É racista, homofóbico, agride covardemente as pessoas e é defensor da tortura, somente sendo contido pelo inspetor Santos. O comportamento do inspetor é bastante contraditório, pois dizia não permitir violência na sua frente, mas sabia que o seu auxiliar a praticava quando ele não estava presente. No episódio “Condenado à morte”, o inspetor Santos até ameaça alguns suspeitos de entregá-los ao Jorjão.
        No episódio “O Homem do Prego”, o inspetor Santos e Susy ouvem no corredor de um prédio um marido batendo na esposa e os dois nada fazem; Suzy até ri da situação. E em “O Ponto do Crime”, o Jorjão diz que vai “apertar” uma mulher para ela falar “tudo” e o inspetor Santos apenas diz “por enquanto não”. No episódio “Brincadeira de Mau Gosto”, Jorjão ameaça prender uma mulher e levá-la para passar uma noite com os presos na cadeia. O inspetor deveria denunciar esse comportamento, mas é bom lembrar mais uma vez que eram os anos 1970/80, em plena ditadura militar. Felizmente, esse tipo de comportamento já não é mais aceito, mesmo sendo um programa de entretenimento e ficção.
        Apesar de casado, esse Jorjão paquerava as mulheres o tempo todo, mas ele próprio vivia em um relacionamento abusivo com a esposa, a “Zefa”, uma mulher forte e gorda, de quem apanhava e era tratado com ofensas e ameaças. Essa era outra característica forte dos anos 1970/80: uma mulher agredir o marido era considerado “engraçado” (infelizmente, ainda hoje muita gente continua pensando assim!). Os delegados queriam sempre prender o primeiro suspeito que encontravam. Como não conseguiam resolver os casos, telefonavam para o Departamento de Polícia Judiciária para pedir ajuda do inspetor Santos, que dizia “Estamos sem muito serviço, podemos ajudar sim” ou “Não temos nada importante para fazer”. Em outras situações, os próprios envolvidos procuravam o DPJ, ao invés de uma delegacia, “para evitar escândalos”. E o inspetor assumia os casos. 😄
        À vezes, o inspetor Santos recorria a alguns truques para conseguir uma confissão, como, por exemplo, acusar um suspeito de assassinato e dizer que as impressões digitais dele estavam no local. O acusado imediatamente respondia: “Mentira! Eu estava usando luvas!” 😄😄😄 Mas o inspetor Santos utilizava-se, também, de práticas condenáveis, como invadir a casa de um suspeito em busca de provas, sem um mandado judicial.
        No final de cada episódio, diante das evidências apresentada pelo inspetor Santos, os criminosos acabavam por confessar facilmente, dando até os detalhes dos seus crimes. Mais uma vez, eu sei que o programa é ficção e é para ser entretenimento, mas quem é que vai confessar espontaneamente os seus crimes, ao invés de negar e deixar para os policiais o ônus de prová-los na Justiça? 😄😄😄 No episódio “Crime no Aeroporto”, um passageiro viajou com uma arma dentro da sua pasta, coisas que aconteciam nos anos 1970/80, mas são impensáveis hoje em dia, principalmente após o 11 de setembro (de 2001), nos Estados Unidos.
        No episódio “O Pistoleiro Gaúcho”, o inspetor Santos e o Jorjão cometem um erro gravíssimo ao permitir que uma mulher, que acabara de confessar ter assassinado o marido, fosse sozinha ao seu quarto pegar a arma que usou no crime. Ela aproveitou-se da distração dos dois e matou-se, mas poderia ter usado a arma contra eles. Em outro episódio, “Crime no Supermercado”, um antigo agente da Gestapo, polícia secreta nazista, vivia com nome falso no Rio de Janeiro como um gerente de supermercado, cujo proprietário seria um alemão que residia na Europa. O nazista era procurado por crime de genocídio e, após ter sido desmascarado por ter assassinado um funcionário que descobrira o seu segredo, pediu ao inspetor Santos para cumprir pena no Brasil e não ser extraditado para a Polônia. E o inspetor Santos concordou!
        A linguagem da época usava gírias do tipo “morou, bicho”, e termos que caíram em desuso com o tempo, como chamar os empregados de “criados” ou referir-se a eles como “criadagem”; ou jovens mulheres de “senhoritas”. Os jornais matutinos e vespertinos também não existem mais, assim como os antigos bondes do Rio de Janeiro. No episódio “Ensaio de Sangue”, acontecem casos de racismo explícito: uma mulher preta refere-se às pessoas brancas como “brancas azedas”, e uma mulher branca usa a expressão “negrinha”.
        O episódio “Crime no Ano Novo” tem a participação do ótimo Brandão Filho (1910-1998), ator que fez inúmeros trabalhos no rádio e na televisão, entre eles o “Primo Pobre e o Primo Rico”, com Paulo Gracindo. Esse episódio é um dos meus preferidos, e o Brandão Filho fazendo um bêbado no bar dá um show! Seria muito legal se um programa semelhante de rádio-teatro sobre suspense fosse criado hoje em dia, à semelhança do “Teatro de Mistério”, evidentemente atualizando as temáticas e excluindo as barbaridades do Jorjão e companhia. Eu publico, abaixo, alguns episódios que separei para exemplificar os meus comentários. E reforço a minha dica aos que quiserem relembrar ou conhecer o programa, façam uma pesquisa na internet e vão encontrar todos os 316 episódios. Mais uma das minhas lembranças afetivas. fr

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