SEJA ÉTICO

SEJA ÉTICO: Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução do conteúdo deste blog com a devida citação de sua fonte.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Toc, toc, toc, toc...

TOC, TOC, TOC, TOC...
Artur Azevedo

     O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.
      Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.
      Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.
      A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.
      Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.
      O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.
      – É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...
      O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:
      – Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?
      – Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...
      – Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.
      – Tu?... Apesar de...?
      – Apesar de tudo!
      – Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!
      – Por quê?
      – Seria ridículo!
      – Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?
      – Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!
      – Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu nome.
      – Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consulta-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.
      – Pois está dito!
      No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:
      “Minha senhora”, dizia esse bilhete, “eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou.”
      A resposta não se fez esperar:
      “Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim.”
      À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.
      No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos.
      – Aqui tem – disse-lhe o Ventura – o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.
      – Queiram sentar-se – disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em resposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um obstáculo a...
      – Não! – interrompeu o Borges. – E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.
      – Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?
      – Já lhe disse que sim.
      – Bom; nesse caso, vou chamá-la.
      – E erguendo a voz:
      – Idalina?
      – Papai? – respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.
      – Vem cá, minha filha!
      Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!
      Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.
      – Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? – perguntou o vidraceiro.
      – Eu referia-me à mãe de D. Idalina...
      – Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.
      Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergue-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés – quero dizer: ao seu pé – tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:
      – Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?
      – Ora, ainda bem! – exclamou o velho. – Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!
      Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.
      O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:
      – Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...
"Contos escolhidos", Artur Azevedo, São Paulo, editora Click, 1997, 159 páginas (Coleção Livros O Globo, vol. 15).

Nenhum comentário: