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sexta-feira, 2 de agosto de 2024

"Achados e Perdidos", Stephen King (trecho)

        “- Você criou um dos personagens mais importantes da literatura americana, depois o destruiu – disse Morrie. – Um homem capaz de fazer isso não merece viver.
        A raiva surgiu como uma doce surpresa.
        - Se você acha isso – disse John Rothstein -, não entendeu uma página do que escrevi.
        Morrie apontou a pistola. O cano parecia um olho negro.
        Rothstein apontou um dedo torto de artrite para Morrie como se fosse sua própria arma e sentiu satisfação quando viu o homem piscar e se remexer, desconfortável.
        - Não me venha com sua crítica literária imbecil. Eu já encarei uma tonelada delas antes mesmo de você nascer. Quantos anos você tem, afinal? Vinte e dois? Vinte e três? O que sabe da vida, o que sabe de literatura?
        - O bastante para saber que nem todo mundo vende. – Rothstein ficou estupefato de ver lágrimas nos olhos irlandeses. – Não venha me dar um sermão sobre a vida, não depois de ter passado os últimos vinte anos escondido do mundo como um rato.
        Aquela velha crítica, ‘Como você ousa abandonar a fama?’, transformou a raiva de Rothstein em fúria, o tipo de fúria que destruía coisas de vidro e quebrava mobília, o tipo que Peggy e Yolande teriam reconhecido. E ele ficou feliz. Era melhor morrer em fúria do que se acovardando e suplicando.
        - Como você vai transformar meu trabalho em dinheiro? Já Pensou nisso? Suponho que sim. Suponho que você saiba que daria no mesmo tentar vender um caderno roubado de Hemingway ou um quadro de Picasso. Mas seus amigos não são tão estudados quanto você, não é? Vejo pelo jeito que falam. Eles sabem o que você sabe? Tenho certeza de que não. Mas você fez promessas falsas a eles. Inventou uma pizza imaginária enorme e disse que cada um podia ficar com uma fatia. Acho que você é capaz disso. Acho que você tem um mar de palavras à disposição. Mas acredito que esse mar seja raso.
        - Cala a boca. Você parece a minha mãe.
        - Você não passa de um ladrãozinho comum, meu amigo. E que burrice é roubar o que nunca vai poder vender.
        - Cala a boca, gênio, estou avisando.
        Rothstein pensou: E se ele puxar o gatilho? Seria o fim dos comprimidos. O fim dos arrependimentos e dos montes de relacionamentos desfeitos, que ficaram pelo caminho como carros quebrados. O fim da escrita obsessiva, de acumular caderno atrás de caderno como pilhas de cocô de coelho espalhadas por uma trilha no bosque. Uma bala na cabeça não devia ser tão ruim. Melhor do que câncer ou Alzheimer, o grande horror de qualquer um que passou a vida usando o cérebro como ganha-pão. Claro que haveria manchetes, e já tivera muitas antes mesmo da porcaria da história da Time... Mas, se ele puxar o gatilho, eu não vou ter que lê-las.
        - Você é burro. – De repente, ele estava em um tipo de êxtase. – Se acha mais inteligente do que aqueles dois, mas não é. Pelo menos, eles entendem que dinheiro pode ser gasto. – Ele se inclinou para a frente e olhou para o rosto pálido e cheio de sardas. – Quer saber, garoto? São caras como você que fazem a má fama dos leitores.
        - Último aviso – disse Morris.
        - Foda-se o seu aviso. E foda-se a sua mãe. Ou você atira em mim, ou sai da minha casa.
        Morris Bellamy atirou nele.”

“Achados e Perdidos”, Stephen King, tradução de Regiane Winarski; 1ª ed., Rio de Janeiro, Editora Suma de Letras, 2016, 352 páginas.

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