Casa Velha, Machado
de Assis, com introdução de Lúcia Miguel Pereira e ilustrações de Santa Rosa;
Livraria Martins Editora, São Paulo, 1968, 202 páginas.
Em “Casa
Velha”, um padre relata o que lhe contou “um velho cônego da Capela Imperial” sobre
uma estória ocorrida com ele em abril de 1839, então com apenas 32 anos, justamente
o ano do nascimento de Machado de Assis.
Após ler “as Memórias que outro padre, Luís
Gonçalves dos Santos, o Padre Perereca chamado, escreveu do tempo do rei”, o
qual considerou “medíocre”, ele resolveu escrever um livro sobre o “reinado” de
D. Pedro I. O autor usa este termo, apesar da historiografia preferir
considerá-lo imperador, mesmo que um imperador sem um império propriamente. Em
1839, o Brasil estava sendo governado pela Regência Una de Pedro de Araújo
Lima, após a renúncia de D. Pedro I, e por conta do filho, Pedro de Alcântara,
ser ainda menor de idade.
O cônego, que não tem
seu nome identificado no livro, passa a frequentar a casa de dona Antônia,
viúva de um ministro, para pesquisar a biblioteca que ele deixou. E acaba
envolvido em uma complicada relação entre Félix, o filho da viúva, e Cláudia, a
“Lalau”, uma agregada da casa, de “não mais de dezessete anos” e que perdera os
pais bem cedo. Dona Antônia não queria que os dois se casassem. Apesar de amar
a moça, a quem educou, dizia que desejava alguém para o filho que estivesse à
altura do nome da família, enfim, uma questão de orgulho.
“A casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha
entre o povo o nome de Casa Velha, e era-o realmente: datava dos fins do outro século.
Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde
criança, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois
portões enormes, um especial às pessoas da família e às visitas, e outro
destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a
pastar. Além dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela,
um caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa
aos domingos, ou rezar a ladainha aos sábados.”
Com a convivência, o próprio cônego percebeu
amar Lalau, mas sabia da impossibilidade de qualquer relação com ela. Procurou,
então, se esforçar para ajudá-la: “impedido de a amar na terra, procurava ao
menos fazê-la feliz com outro”. D. Antônia, no entanto, pediu a sua ajuda para
afastá-los, dizendo que o amor entre os dois era impossível por eles serem
irmãos. Lalau também seria filha do ex-ministro.
Atenção, a seguir vou escrever informações
sobre o final do livro, então, quem não quiser saber antecipadamente, pare
aqui!
O padre, então, passou a
querer afastar os dois, contando-lhes o seu parentesco, o que lhes causa grande
tristeza. Mas, ao revelar este segredo também à Dona Mafalda, tia de Lalau, com
quem ela voltou a morar após saber dos laços familiares que a uniam a Félix, a
parente desmentiu Dona Antônia. A verdade era que Lalau não era filha do
ex-ministro, mas que este havia tido um outro filho com a mãe dela, que morreu
prematuramente aos quatro meses de idade. Lalau já era nascida à essa época.
O padre confrontou Dona
Antônia, que lhe confessou ter mentido para separar o casal. Mas afirmou
desconhecer a traição do marido e o nascimento e morte da criança, dizendo ter
sido punida com a revelação. E que a punição deveria ser completa, passando a concordar
com o casamento. Mesmo com tudo esclarecido e sem o impedimento ao casamento
com Félix, Lalau, no entanto, não quis mais casar-se com ele. Alegou que
continuava amando a mãe, mas “não poderia casar-me com o filho do mesmo homem
que envergonhou minha família”.
O padre pediu que Lalau
refletisse e mudasse sua decisão; a tia Mafalda, Dona Antônia e o próprio Félix
também, mas ela não quis. E, mais tarde, acabou casando com Vitorino, filho de
um “segeiro”, que consertava as carruagens da Casa Velha. E Félix casou-se com Sinhazinha,
neta de uma baronesa amiga da mãe dele. O padre finalizou a estória: "Se ele e Lalau foram
felizes, não sei; mas foram honestos, e basta".
“Casa Velha” foi
publicado em partes, de janeiro de 1885 a fevereiro de 1886, na revista feminina
“A Estação”, do Rio de Janeiro. Porém somente saiu em livro muitos anos depois,
em 1943, através da crítica literária Lúcia Miguel Pereira, quando Machado de
Assis já não era mais vivo. A edição do livro que eu li, de 1968, tem uma
extensa introdução de Lúcia Pereira. Segundo ela, o livro não é dos melhores de
Machado de Assis:
“Afirmar que não é das melhores obras de Machado de Assis não equivale
a dizer que é de todo ruim. Ao contrário, o pior Machado ainda é superior a
muito romancista que anda por aí reeditado e admirado; nada do que escreveu foi
vulgar; em nenhum trabalho, por mais ligeiro que fosse, deixou de por a marca
da sua finura, da sua sobriedade, da sua natural e comedida graça de espírito e
de forma.”
Lúcia Pereira acreditava que, apesar de ter
sido publicado em uma revista já na fase realista, ou de maturidade do autor, entre
1885 e 1886, o texto pertence à sua fase romântica. O texto seria anterior a
1880, quando se iniciou a fase da maturidade, e deveria estar pronto e
guardado, mas, como Machado de Assis tinha que apresentar algo para a revista
anos depois, recorreu a ele.
Após o final do livro, tem ainda o conto “Uma
por outra”. Josino é um estudante de “matemáticas”, que morava em um pobre
sótão na Rua da Misericórdia, que dava para o antigo Morro do Castelo, no Rio
de Janeiro. Em uma ida ao teatro, ele se encantou com uma mulher no camarote, a
quem nomeou de “Silvia”. E da janela do seu sótão, via em uma das casas do
morro uma outra mulher, por quem se apaixonou, e deu o nome de “Pia”. Quando
sua mãe morreu, viajou para a província para o enterro e para passar algum
tempo com o pai. Quando retornou, conheceu um negociante e sua família no “vapor”
que o trazia para a Corte, e se interessou pela filha, Estela.
No Rio, ficou sabendo que o amigo Fernandes,
a quem pediu que localizasse a “moça do Castelo”, iria casar com ela. Sem
ressentimentos, disse que iria casar também, só faltava pedir a mão ao pai de
Estela. Dias depois, acompanhando-a em um casamento, reconheceu a noiva como
sendo a moça por quem se encantara no camarote do teatro, seu nome era
Margarida. O pai de Estela, porém, resolveu fazer uma viagem de emergência para
São Paulo, levando a família. Meses depois, Josino ficou sabendo que Estela
casara-se com outro rapaz, em Sorocaba. Sem as mulheres que despertaram seu
interesse, acabou, no entanto, encontrando alguém:
“Assim pois, uma por outra, vim trocando as
mulheres possíveis e perdendo-as sucessivamente. Aquela com que afinal me casei
é que não substituiu nenhuma Sílvia, Margarida ou Estela; é uma senhora do
Crato, meiga e amiga, robusta apesar de magra, mãe de dois filhos que vou
mandar para o Recife, um dia destes.” fr